Ele estava lá, belo, esplêndido. Os seus olhos grandes, negros, fixos na água do lago. Sua imagem era tudo o que ele queria ver, colorida de arte implícita, vontade de um deus, um ser supremo, um artista insatisfeito. O mundo todo estava no lago: corpos e fantasmas. Do lado de fora, o vazio pastoso, escorregadio. Real, apenas seu corpo, nu e perfeito, e ele o desejava, como nunca desejou nada na vida. Queria tocar aquela imagem no fundo do lago, por que ela era só sua, para que ninguém mais a desejasse ou a tocasse. Vieram os pássaros e Narciso se levantou esentia medo, mas a paixão era maior. Recordou-se do seu destino: filho de um deus, deveria ser um semideus. Mas era vítima de um castigo, com a beleza dos deuses e o destino cruel dos homens: Amado, admirado e mortal! Sua mãe, a mais bela, desaparecera no tempo, tomada pelo remorso, pela paixão, envelhecida e solitária. Mas vivera sua infância ao lado dela e fora livre. Adolescente, compreendeu o seu destino: era o ser mais perfeito da aldeia e tantos o amavam, quanto tantos o odiavam. Descobriu que era fruto de um amor proibido, da paixão entre um deus e uma jovem aldeiã. Naquele dia, caminhou sem rumo por um longo tempo e, cansado, saciou a sede no lago, Deparou-se com a sua imagem e passou, ali, o resto do dia, admirando-se. Isolou-se de todos. Deixava sua casa pela manhã e só voltava à noite. As jovens da aldeia uniam-se em pequenos grupos e, escondidas entre as folhagens, admiravam-no a banhar-se nas águas do lago. Voltavam para casa suspirando e indagavam-se sobre qual dentre elas seria, um dia, a escolhida dele. Narciso sabia que estavam a vê-lo e sentia prazer em se mostrar para elas. “As pessoas envelhecem - pensou olhando os anciãos da aldeia - e a beleza se vai para sempre”. Novamente seu espírito se conturbou e andou, por um longo tempo, ainda mais taciturno, até que um dia sua mãe lhe disse que seu pai a visitara e anunciara-lhe que estava a negociar com Zeus a possibilidade de torna-lo imortal. Narciso voltou a sorrir e viveu tempos de glória em que todos à sua volta sentiram a sua felicidade. Ele acreditou, firmemente, que seu pai conseguiria a imortalidade que ele tanto desejava e, no lago, tinha longas conversas com a sua imagem refletida. Um dia, numa tarde suave, estava de pé, às margens do lago e sentiu uma presença atrás de si. Virou-se, imaginando que fosse uma das jovens da aldeia. Mas era um ser diferente, tudo nele era perfeito, transmitia-lhe paz e uma sensação jamais sentida antes. Compreendeu que ali estava seu pai e sabia que ele viera lhe trazer a notícia da imortalidade. Passaram o resto da tarde juntos e Narciso soube como era a vida no Olimpo: entediante, em constante disputa pelo poder, eterna, cansativa, e descobriu, quando a noite já descia, que continuaria mortal. Seu pai abraçou-o e se foi, dizendo-lhe que aquela era a única vez que estariam juntos, por ordem de Zeus. Narciso odiou Zeus, como nunca havia odiado nada na vida; tornou-se quieto, desprezando a todos. O tempo passou e, um dia, sua mãe, triste e desiludida, suspirou em seus braços. Levou-a para a colina, na parte mais alta do sopé do Monte Olimpo, cavou uma cova e lá depositou seu corpo em protesto a Zeus. Durante muitas noites, sonhou com as guerras instigadas pelos habitantes do Olimpo e a imagem de um deus implacável rondou seu sono como uma sombra pesada. Mas, quando a luz do dia despontava, voltava para o lago e deleitava-se com a sua imagem, amiga fiel e indelével. Certa manhã foi para o lago e as moças o seguiram. Em frente à margem livrou-sedos trajes, e as jovens suspiraram. Olhou para trás e encontrou os olhares furtivos que o admiravam e elas fugiram envergonhadas. Olhou a água pura e divagou sobre a existência. Concluiu que tudo é um sonho, água, trépidas emoções e vadias interlocuções perdidas nos desejos imunes e secretos. Viu todos os seres humanos vagando na água, incólumes, extasiados; viu a vida nascendo da água e os seres, todos sublimes e perfeitos, nascendo da água, contorcendo-se, gemendo com o prazer que vem das entranhas da terra e penetra as entranhas do ser humano. E a sua imagem era tudo. Tudo havia se passado, as lembranças terminadas, o lago o chamava, pois lá estava sua imagem, sua maior paixão. Mergulhou. Um mergulho profundo em busca da imortalidade e o lago se fechou, num redemoinho imenso e um brilho ofuscante desceu do céu. As jovens, que voltavam para casa, viram o céu mudar de cor e ouviram uma espécie de música vinda da direção do lago. Decidiram retornar e lá não mais viram Narciso, somente suas roupas sobre a relva. Mas a estranha melodia continuava do meio do lago e elas sentaram-se e choraram, pois compreenderam que não mais veriam Narciso. Quando a melodia parou, formou-se um pequeno círculo na água e, do centro dele, brotou uma flor, de incomparável beleza e aquelas jovens que ali estavam batizaram-na de a Flor de Narciso. Contudo, essa flor brotou em todos os lagos do mundo e passou a se chamar simplesmente Narciso.